Miguel Leal: Estratégias de controlo – a arqueologia das suas utopias

João Fernandes


A obra recente de Miguel Leal utiliza a alegoria como desconstrução crítica de algumas das representações do poder detectáveis na sociedade contemporânea, interrogando a ideia e o lugar da arte na sua relação com os discursos e as estratégias da ideologia, a partir do momento em que esta se revela interpretável como um sistema de controlo social. Depois de um conjunto de projectos em que o artista explorou as possibilidades das práticas artísticas na sua condição de “experiências do real”, a sua obra centra-se na organização de sistemas de representação alegóricos de outros tantos sistemas de domínio na produção iterativa de imagens e utopias. Consistindo a alegoria na construção de uma imagem que nos reenvia para uma outra imagem que lhe subjaz, Miguel Leal apropria-se de referências icónicas ou textuais para construir modelos subversores dos códigos ideológicos inerentes a esses sistemas. O Museu e a Ilha surgem neste contexto referenciáveis como conceitos de uma topologia do controlo social. O Museu torna-se definível por uma estratégia agregadora e concentracionária de imagens e discursos, enquanto a Ilha, constituindo-se como imagem libertária e dispersiva dos paradigmas da utopia e da libertação, pode ser definível igualmente pelo seu isolamento e limites, como uma ilusão deceptiva desses mesmos paradigmas.

 

No Projecto Bunker, desenvolvido entre 1996 e 1999, Miguel Leal constrói o modelo e as práticas de um Museu da Estratégia Moderna (MOMS), estruturado em três Departamentos: o Departamento de Arte, o Departamento Internacional e o Departamento Analítico. O projecto artístico como proposição crítica dos seus espaços de representação institucionais surge claramente evidente na autonomia e isolacionismo do bunker proposto. Se Broodthaers definira a “mise en abîme” do lugar da arte no lugar do museu, Miguel Leal possibilita-nos agora, a partir do seu Bunker, o confronto com o autosegregacionismo e a autosuficiência integracionista da instituição de arte no contexto das estratégias de visibilidade e ocultação de um sistema global de poder e de controlo. Objectos, documentos, sites Web, maquetas de arquitectura, diagramas, cartazes, livros e folhetos estruturam-se numa constelação complexa de situações que resulta numa cosmologia ficcional, alegórica da “própria natureza do equívoco museológico” como dispositivo crítico e mausoléu possível da especialização do poder e das suas várias estratégias[1]”. A apropriação de objectos e de sistemas de representação, assim como a sua recontextualização, surge como uma metodologia que o artista enquadra na sua assumpção do objecto e da prática artística como “orgânicos mutantes”, reveladores da tensão e do paradoxo existentes entre “a variabilidade elástica da prática artística e a aparente rigidez cadavérica da sua objectualização[2]”. Há uma clara superação do ready made duchampiano nestes orgânicos mutantes: se eles partem de uma selecção de objectos existentes e funcionais, não serão no entanto apenas “transformados” ou replicados como objectos de arte; apresentam-se antes como imagens fantasmáticas, por vezes abstractas e conceptuais, que nos reenviam para a realidade, se bem que rompam com a sua convenção semântica pela sua transferência para um diferente contexto ideológico. É deste modo que um carimbo industrial ou um par de binóculos são identificados e denominados “objectos innstotucionais”.

 

O isolamento e a autonomia detectáveis no Projecto Bunker permanece identificável na emergência de uma nova topologia nos trabalhos de Miguel Leal: a Ilha, cuja representação, a partir do projecto Une petite révolution cataléptique (2002), surge associada ao universo da tradição das histórias de corsários e de pirataria. Nesse projecto, um conjunto de bandeiras de corsários centrava um espaço donde proliferava a cartografia de várias ilhas, entre a verosimilhança do real e o convite ao imaginário, representadas por diversos desenhos instalados nas paredes. A Ilha, no seu isolamento descentrado, evoca sempre a questão da mobilidade e da utopia social, num paradigma vasto de que, na cultura ocidental, encontramos numerosíssimos exemplos. Por sua vez, a Ilha ocupa, na História da Pirataria, o lugar do refúgio e da conquista, sendo esta mesma História um preâmbulo esquecido da globalização económica em decurso do século XVI até aos nossos dias.

 

Em Phantomatic (2003), o projecto agora apresentado no Museu de Serralves, a Ilha é o território donde proliferam as imagens, cruzando duas narrativas como intertexto da ocupação do Museu empreendida pelo artista: a história do Capitão Misson, narrada presumivelmente pelo Capitão Charles Johnson e atribuída a Daniel Defoe, na sua publicação em 1724[3]; e a história do Capitão Mission, tal como é narrada por William S. Burroughs, em 1991[4].

 

Misson terá sido um pirata francês que, ao lado do seu adjunto, um padre romano chamado Caraccioli, toma o comando do navio Victoire, protagoniza diversas aventuras na Costa Ocidental Africana, chegando depois a Madagáscar, onde funda, cerca de 1700, uma colónia libertária, a Libertatia. Esta colónia era gerida por um conjunto de Artigos que antecipam muitos dos direitos humanos preconizados mais tarde pelas Revoluções Francesa e Americana. Não havia pena capital, escravatura, prisão ou qualquer condicionamento da vida social através da religião ou da sexualidade. A colónia é dizimada pelos nativos depois de o Victoire se ter afundado no seguimento de uma noite de excessos. Caraccioli morre; Misson decide partir para a América com um outro pirata, o capitão Tew, mas desaparece numa tempestade ocorrida a meio da viagem.

 

A utopia de Misson será transferida por Burroughs para a focalização de um conflito ecológico contemporâneo: a extinção dos lémures na Ilha de Madagáscar, onde, das quarenta espécies existentes quando seres humanos chegaram à Ilha, sobrevivem apenas vinte e duas, todas elas ameaçadas pelo crescimento demográfico e pela deflorestação, a qual terá já destruído noventa por cento das florestas originalmente existentes. Em Burroughs, é um dos Artigos da “Constituição” de Mission, que interditava a morte dos lémures, respeitando um antigo tabu nativo, que vai originar a sua perdição. Traído por um dos seus companheiros, corrompido por quem queria acabar com Libertatia, Mission vai morrer em batalha, não sem antes ter criado o Museu das Espécies Desaparecidas e condenado o mundo á maldição do regresso das doenças extintas.

Burroughs esclarece que “o Museu das Espécies Desaparecidas não é exactamente um museu, dado que todas as espécies permanecem vivas em dioramas dos seus habitat naturais” (The Museum of Lost Species is not exactly a museum, since all the species are alive in dioramas of their natural habitats.) Um Museu transforma-se assim num Imaginário, cuja topologia é uma sucessão de imagens. Mais (ou menos...) do que uma utopia, o Museu converte-se deste modo numa a-topia, num não-lugar onde a preservação levanta curiosamente a questão ética da legitimidade ou veracidade do contexto de representação dessa mesma preservação.

 

Em Phantomatic, Miguel Leal faz coincidir o intertexto das suas leituras numa operação de transformação e deslocalização do próprio Museu onde apresenta o seu projecto. A estrutura deste tem a sua origem numa cosmologia criada a partir das representações e acções de dois conjuntos de seres mecânicos, suscitando o confronto entre pequenos robôs sensíveis à luz ou ao movimento e outros pequenos bonecos, curiosamente conhecidos por “mustaphas”, transformados pelo artista, os quais se movimentam em círculos repetitivos e pré-definidos. Por oposição a estes, cada robô foi montado e transformado pelo artista de modo a empreender um conjunto de movimentos que lhe conferem uma identidade específica na comunidade em que se integra. Duas projecções vídeo localizam as suas personagens, filmadas sobre uma superfície recortada com a configuração de um mapa da Ilha de Madagáscar. Sugestivamente, as filmagens foram realizadas no palco do Auditório do Museu. O território representacional da Ilha adquire uma condição objectual na exposição, rodeado por plantas artificiais que se movimentam em resposta aos estímulos suscitados pela deslocação do espectador. No seu percurso, este irá confrontar-se igualmente com as imagens fantasmáticas dos pequenos robôs, desenhadas na condição de “orgânicos mutantes” sobre as paredes do museu. Na entrada deste, uma esfera amarela em acrílico irradia o som das condutas de ar condicionado, que o artista percorreu e filmou, revelando-as agora numa outra projecção vídeo autónoma.

Phantomatic suscita vários tempos e paradigmas a partir do confronto síncrono do espectador com as suas evidências. O lugar do Museu não cessa de ser interrogado. Contudo, encontramo-nos em pleno Museu de História Ficcional, herdeiro céptico dos Museus de História Natural do Passado. A Literatura, a História e a Geografia convocam um projecto artístico que as transfere para o território de uma narrativa pós-science fiction, onde a utopia se converte numa atopia, o presente revela-se uma estranha arqueologia do futuro, o museu preserva, apresenta e classifica as imagens de seres mecânicos para ele exclusivamente criados, a vegetação artificial agita-se em função da presença do espectador, o qual é confrontado com a manifestação de vestígios de uma ou várias estórias, de um ou vários contextos, suportes, linguagens, estímulos sensoriais e cognitivos.

 

Fantasmático, o lugar da arte cruza-se com o lugar da instituição que a apresenta, na intersecção dos seus labirintos, na revelação e ocultação dos seus intertextos, nos percursos possíveis e impossíveis do espectador. Será a topologia uma ficção estética, do mesmo modo que toda a cartografia é uma ficção política? Poderá o Museu revelar-se a Interzone onde Burroughs situou a transgressão de todos os limites? Nestes tempos da chamada Nova Ordem Mundial, serão os pequenos “mustaphas” os derradeiros lab pets do nosso comportamento social?

 

Como qualquer projecto artístico, o trabalho de Miguel Leal suscita mais questões do que respostas. A sua dimensão alegórica é latente, mas não ostensiva, a referência é generativa mas jamais conclusiva, a fábula contextualiza uma possível moral, mas jamais a enuncia ou denuncia. Phantomatic abre novos confrontos possíveis sobre a experiência da arte, o lugar e o tempo da sua produção e recepção. O Museu e a Ilha convergem como figuras estruturantes da alegoria da experiência e da observação, na detecção das instâncias e das circunstâncias do controlo social. Observe the observer observed. Observa o observador observado[5]. Num Museu, a arte é sempre o Fantasma de uma Oportunidade.

 



[1] Cf. Miguel Leal, in Projecto Bunker (1996-99), Círculo de Artes Plásticas de Coimbra, 2000, p.48.

[2] Idem, “Um Outro Orgânico Mutante”, ibidem, p.7.

[3] Cf. Daniel Defoe, A General History of  the Most Notorious Pirates, ed. Manuel Schonhorn, Londres, Dover Publishers.

[4] Cf. William S. Burroughs, Ghost of Chance, Serpent’s Tail, Londres, 2002; trad. Port. O Fantasma de uma Oportunidade, Teorema, Lisboa.

[5] William S. Burroughs, Ghost of Chance, p. 18.

 


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